O homem é um animal político — Aristóteles

janeiro 03, 2011

 A crise gaguejante do euro



O jogo do massacre começou: a crise financeira irlandesa reproduz o esquema da Grécia e abre o caminho para os seguintes, Portugal e outros. Para pagar as suas guerras no Afeganistão e no Iraque, os Estados Unidos optaram por monetizar a sua dívida pública, ou seja, repassar as suas faturas ao resto do mundo.

Por Jean-Claude Paye [*]
Este afluxo de liquidez permite às elites capitalistas devorarem presas cada vez mais gordas. Depois de ter pilhado o terceiro mundo, elas podem finalmente atacar o euro. Mas, ao invés de impedi-las, o Banco Central Europeu favorece-as em detrimento das populações europeias — doravante restritas às políticas de austeridade.


Uma frase atribuída a Marx ensina-nos que quando a história não se repete tem tendência a gaguejar. Este diagnóstico ilustra perfeitamente o novo ataque contra o euro. Por ocasião da crise irlandesa, os mercados financeiros puseram em cena um cenário semelhante àquele da ofensiva contra a Grécia [1]. Trata-se do deslocamento de uma mesma causa externa: a política monetária expansionista do Federal Reserve [FED, banco central dos EUA]. De maneira análoga, a ofensiva dos mercados vai igualmente ser apoiada pela Alemanha Federal


Tal como durante os meses de Abril e Maio de 2010, o anúncio de uma futura injeção maciça de liquidez pela Reserva Federal estadunidense não teve como efeito fazer baixar o valor do dólar, mas relançar o assalto especulativo contra a zona euro. A Alemanha esteve igualmente, em parte, na origem da subida das taxas de juros das obrigações irlandesas, assim como das portuguesas e espanholas. As recentes declarações, no entanto puramente formais, de Angela Merkel sobre a necessidade de fazer os credores privados participarem, em caso de reestruturação da dívida de certos países da zona euro, reforçou o a desconfiança dos mercados em relação aos países mais fracos.


O objetivo do FED: uma criação ininterrupta de bolhas financeiras


O dito espirituoso de John Connally, secretário do Tesouro de Nixon em 1971, "o dólar é nossa moeda, mas é vosso problema", é de grande atualidade. Até o presente, a monetização da dívida americana coloca menos problemas aos Estados Unidos do que aos seus satélites. O arbusto da dilapidação financeira da Grécia já fora suficiente para dissimular a floresta dos déficits estadunidenses. Da mesma forma, este fim de ano viu a dívida irlandesa eclipsar o anúncio de um novo programa de compra maciça de títulos do Tesouro pela Reserva Federal americana. Esta manobra de "quantitative easing" consiste em pôr em andamento a máquina de imprimir tendo em vista fazer baixar as taxas de juros sobre as obrigações do Estado. Ela deveria permitir, à razão de 75 bilhões por mês, uma injeção de 600 bilhões de dólares na economia do outro lado do Atlântico.


O FED já havia introduzido uma soma de 1,700 bilhão de dólares no circuito econômico estadunidense. Este novo programa de injeção de liquidez mostra-nos que esta política monetária fracassou amplamente, uma vez que se verifica necessária uma nova fase de compra. Sobretudo, indica-nos que a "quantitative easing" não é mais uma política excepcional. Ela é para perdurar e torna-se assim um procedimento normal [2] .


Ao contrário das declarações do Tesouro, a criação monetária lançada pelos EUA não tem como objetivo permitir aos bancos conceder créditos aos particulares e às empresas. Dada a conjuntura econômica, esta procura atualmente é fraca e as instituições financeiras dispõem de reservas importantes.


Já existe abundância de liquidez e acrescentar mais não vai resolver o problema atual que tem a ver com a desconfiança dos bancos em relação à solvabilidade dos eventuais tomadores de empréstimos, ou seja, sobre a rentabilidade dos seus investimentos.


Assim, para que é que pode servir esta injeção permanente de liquidez num mercado já saturado? Para responder a esta pergunta, basta observar os efeitos desta política: formação de bolhas especulativas e ascensão do valor dos ativos, afluxo de capitais nos países em forte crescimento, tais como a China ou a Índia, e ataques especulativos, nomeadamente contra a zona euro.


A política estadunidense de monetização da sua dívida pública atualmente é pouco inflacionista pois uma grande parte dos capitais deixa os Estados Unidos a fim de se colocar nos mercados emergentes e, assim, não alimenta a procura interna nos EUA. Ela não provoca uma forte baixa do dólar, uma vez que as compras adicionais de ativos (ouro, matérias-primas e petróleo) que provoca, fazem-se na divisa estadunidense, o que sustenta o seu curso. As compras dos especuladores americanos fazem-se na sua moeda nacional, ao passo que os "investidores" estrangeiros, incitados a seguir o movimento de alta induzido por esta política, trocam as suas moedas nacionais contra dólares a fim de comprar estes "ativos".


A intenção do BCE: a transferência de rendimentos dos assalariados para os bancos


No que se refere à União Europeia, o BCE anunciou o prosseguimento da sua política de compras de obrigações soberanas. Ele decidiu igualmente prolongar seu dispositivo de refinanciamento dos bancos, ilimitado e a uma taxa fixa, por um novo período de quatro meses pelo menos. Também aqui, registra-se uma mudança de atitude: esta política não é mais apresentada como excepcional, mas sim como permanente [3] . O que se modifica na política do BCE é o seu compromisso ao longo do tempo. "Em tempos normais, o BCE compra títulos a curto prazo: três semanas, um mês, mais raramente três meses, mas desde a crise o BCE pôs-se a comprar títulos a prazo de um ano, o que nunca fora visto" [4] . Esta mudança inverte o papel do Banco Central, de prestamista de último recurso ele passa a prestamista de primeira linha. O Banco Central funciona então como uma instituição de crédito.


Até o presente, o BCE adquiriu títulos de dívida pública num montante de 67 bilhões de euros [5] , essencialmente títulos de Estados em dificuldade, tais como a Grécia e a Irlanda. Estamos portanto bem longe dos 600 bilhões de dólares de compra efetuado pelo FED. A política do Banco Central Europeu difere não só quantitativamente como também qualitativamente, uma vez que optou por esterilizar sua injeção de liquidez, diminuindo na mesma medida os empréstimos que efetua aos bancos privados.


O objetivo do Banco Central Europeu é tentar retardar ao máximo uma reestruturação da dívida grega, irlandesa, portuguesa...; estando os grandes bancos europeus fortemente empenhados no seu financiamento. Trata-se antes de tudo de salvar as instituições financeiras e tentar fazer com que a fatura seja paga pelos assalariados e os poupadores.


Para assim fazer, a União Europeia e os Estados membros transferiram aos mercados financeiros a chave do financiamento dos déficits. Os Estados devem tomar emprestado junto a instituições financeiras privadas que obtêm, elas, liquidez a baixo preço do Banco Central Europeu.


Enquanto os déficits dos Estados membros da UE, em média de 7%, são claramente um recuo em relação aos 11% do Estado federal estadunidense [6], a União Europeia, ao contrário dos EUA, comprometeu-se a seguir a via de uma redução brutal das despesas públicas. A Comissão quer impor aos países uma longa cura de austeridade para retornar a uma dívida pública inferior a 60% do PIB e lançou procedimentos de déficit excessivo contra os Estados membros. Em meados de 2010, praticamente todos os Estados da zona a ela estavam submetidos. Ela pediu-lhes para se comprometerem a retornar à fasquia de 3% antes de 2014 e qualquer que seja a evolução da situação econômica. Os meios previstos para a realização destes objetivos não consistem numa tributação dos grandes rendimentos ou das transações financeiras, mas antes numa diminuição do salário direto e indireto, a saber: compromisso com políticas salariais restritivas e colocação em causa dos sistemas públicos de aposentadoria e de saúde.


Complementaridade das políticas do FED e do BCE


A política monetária fortemente expansiva dos EUA consiste em comprar obrigações soberanas a médio e longo prazo, de 2 a 10 anos, no mercado secundário, a fim de que as novas emissões que o FED deve fazer encontrem tomadores a uma taxa de juro fraca, ou seja, suportável pelas finanças públicas estadunidenses.


Esta política não é apenas adequada aos interesses do capital americano, mas está em sintonia com os do capitalismo multinacional. Ela é a ferramenta principal de uma prática de taxas de juro muito baixa, abaixo do nível real de inflação. Trata-se de permitir, não só aos Estados Unidos, mas também à Europa e ao Japão, poder enfrentar a sua montanha de dívidas praticando taxas piso. Todo aumento do rendimento obrigacionista conduziria estes Estados à falência. Além disso, em médio prazo esta prática laxista terá um efeito inflacionário que desvaloriza estas dívidas públicas e reduzirá, em termos reais, os encargos das mesmas.


Dado o lugar particular do dólar na economia mundial, a Reserva Federal americana é o único banco central que pode permitir-se uma tal política, praticada numa escala tão elevada. Toda outra moeda nacional seria atacada pelos mercados e fortemente desvalorizada. O FED é o único banco central que pode fazer funcionar a máquina de impressão e fazer com que esta moeda adicional seja aceita pelos agentes econômicos estrangeiros.


A monetização da dívida dos EUA, dando munições aos mercados financeiros, permite lançar, de forma barata, operações de especulação contra a zona do euro. Ela está em linha com os objetivos da UE, pois permite mobilizar os mercados e fazer pressão sobre as populações europeias, a fim de lhes fazer aceitar uma diminuição drástica do seu nível de vida. As políticas orçamentais encetadas pelos Estados membros terão como efeito impedir toda retomada econômica, fragilizando mais as finanças públicas e exigindo novas transferências de rendimentos dos assalariados para os bancos e as empresas. A crise do euro não acabou de gaguejar. Não é a vontade anunciada pela agência americana Moody's [7] de degradar novamente a classificação das obrigações do Estado espanhol, devido às suas "necessidades elevadas de refinanciamento em 2011", que irá contradizer este diagnóstico.


29/Dezembro/2010


[1] "L'UE et les'' hedge funds': régulation ou abandon du territoire européen?" , par Jean-Claude Paye, Réseau Voltaire, le 12 novembre 2010.
[2] "La FED va injecter 600 milliards de dollars dans l'économie américaine" , par Audrey Fournier, Le Monde, 4 novembre 2010.
[3] "La Banque centrale européenne prolonge ses mesures exceptionnelles de soutien" , par Mathilde Farine, Le Temps, 3 décembre 2010.
[4] "La BCE poursuit son programme de rachat d'obligations publiques" , par Audrey Fournier, Le Monde, 2 décembre 2010.
[5] "Les Etats-Unis à l'origine des tensions au sein de la zone euro" , par Sébastien Dubas, Le Temps, 3 décembre 2010,
[6] Manifeste des économistes atterrés. Crise et dette en Europe: 10 fausses évidences, 22 mesures en débat pour sortir de l'impasse , 14 septembre 2010, http://resistir.info/crise/economistas_aterrorizados.html
[7] "Moody's envisage une nouvelle dégradation de la note de l'Espagne" , Le Monde avec AFP, 15 décembre 2010,




[*] Sociólogo. Últimas obras publicadas: La Fin de l'État de droit, La Dispute 2004; Global War on Liberty , Telos Press 2007.

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